terça-feira, 29 de junho de 2010

Filhos da Corrupção # 02 - Skiter



Skiter não era o tipo de cara complicado, não que sua vida fosse simples, ele apenas tentava levar as coisas da forma mais fácil possível. No momento ele se escondia em um beco da Rua Augusta em São Paulo. Em meio a um desfile de garotas de programa que se ofereciam para os motoristas que “acidentalmente” passavam por ali, ele contava o dinheiro de seu último roubo.
– Xá eu ver ixu. Deis, quinze e – disse ele em voz alta enquanto contava as moedinhas. – trinta e xincu xentavus. Bom axu qui da pra cume um big tasti com batatinha e um copão de refri.
Ele jogou a carteira recém adquirida em uma caçamba de lixo, enfiou o dinheiro amassado no bolso de sua calça jeans imunda e começou a andar no meio de prostitutas, drogados e traficantes com um sorriso de satisfação no rosto. Ninguém o incomodava por ele se adequar ao cenário. Um punk com cabelo espetado que pareciam muito com chifres. Ele tinha acabado de completar dezoito anos. Além da calça vestia um coturno preto cheio de rebites de aço e usava um colete preto de couro sem camisa. Seu corpo era esbelto e tinha músculos definidos. Não era forte, mas tinha o típico biótipo de corredores de maratona. Alias correr era com ele mesmo. Desde que tinha passado a viver nas ruas ele se especializou em bater carteiras e sair correndo o mais rápido possível sem olhar para trás.
Adorava aquela cidade e o caos que era viver nela. Adorava mais ainda ter tido aquela overdose que abrira sua mente. Como eu era limitado! Pensava enquanto caminhava e visualizava o grande “M” brilhando a poucos quarteirões.
Quando ele finalmente chegou até a lanchonete percebeu que estava no alto de uma montanha de pedras. Não havia mais lanchonete, pessoas ou até mesmo noite. Era um final de tarde e se Skiter tivesse prestado atenção, em algum momento de sua vida, nas aulas de geografia teria percebido que a estava em meio a uma savana africana. Mesmo assim o cenário lhe era familiar. Com um suspiro de frustração ele se sentou em uma beirada da montanha e ficou admirando a paisagem que só conseguia lhe fazer lembrar do desenho do Rei Leão.
–Ocha! Qui xacu! Maixis uma veiz sonhando com exi lugar – seu comentário em voz alta foi interrompido por uma voz estrondosa que ecoou por toda paisagem. Ela era forte, densa e se fosse colocada em uma balança certamente teria peso. Na linguagem natural, conhecida apenas pelos mortos e pelos entais, ela disse:
“O fim está próximo. Um grande mal em breve ira assolar todos os mundos. Você deve vir até mim antes que seja tarde demais.”
As palavras entraram pelos ouvidos de Skiter como pregos. Sua cabeça começou a latejar e antes da dor se tornar insuportável ele viu uma placa de metal brotar violentamente da terra árida em sua frente. Nela estava escrito Joanesburgo.
Ele se levantou assustado do colchão. Olhou ao seu redor e viu que ainda era noite. Não lembrava de nenhuma das moças que dormiam ao seu lado. Devia estar bem alto quando as encontrou. Elas queriam drogas e tudo que ele queria era não passar mais uma noite sozinho e ter esses malditos pesadelos. Tudo em vão.
Olhou em volta e viu que todos os mendigos dormiam tranqüilos na antiga estação de metro abandonada. Ela ficava em uma zona pouco movimentada da Vila Guilherme em São Paulo. Iniciada no começo dos anos 80 essa obra foi planejada para cruzar todo o centro de São Paulo e ir até o limite sul da cidade. Infelizmente depois de uma licitação fraudulenta e uma obra superfaturado o projeto acabou sendo abandonado e deixado de lado. Quando o secretário de transportes foi preso ele alegava apenas que um sonho o havia obrigado a construir uma estação naquele lugar. Ele tentou alegar insanidade mas para abafar a opinião pública ele foi condenado e preso em prisão comum. Os demais envolvidos com a obra preferiam lacrar a primeira estação feita e ignora-la.
Mas em poucos meses os sem tento conseguiram abrir buracos nos tapumes de madeira e cortar as portas de aço do lugar. Assim nascia mais um buraco fedorento e escuro que as autoridades preferiam ignorar. Mas era esse lugar que Skiter chamava de lar.
Sua vontade era de continuar vivendo sua rotina tranqüila, mas aqueles sonhos constantes não o deixavam dormir. O pior era que eles estavam ficando cada vez mais agressivos e interrompiam seu sono cada vez mais cedo. Olhou no relógio de pulso de uma das meninas que estavam junto com ele em seu colchão esfarrapado e no brilho verde do visor digital viu 03:30am. Para quem tinha ido dormir às duas horas da manhã era cedo demais. Ele vestiu a primeira calça jeans que encontrou de sua pilha de roupa suja, colocou uma jaqueta e foi para a rua. A madrugada o ajudaria a pensar melhor. Andando por ruas desertas, que em poucas horas estariam lotadas de pessoas, ele pensou, pensou, começou a ter dor de cabeça, bocejou de sono, pensou mais um pouco, sentou em um banco perto de uma banca de jornal fechada e concluiu que pensar não era seu forte nem de madrugada. Riu de si mesmo e esperou.
Quando a banca de revistas abriu, ele fez a única coisa que sabia quando estava perdido. Perguntou para o dono da banca como chegar.
– Ixu mesmu! Eu queru ir pra exa tal de Joanasburgo!
– Joanesburgo? – perguntou o solicito dono da banca não querendo confusão com um punk logo cedo. Eles tinham a tendência nada agradável de ficar irritados fácil e começar a quebrar as coisas.
– Ixu! Ixu! Pronde fica?
– No continente Africano. África do Sul.
– Oxe num ajudo muito! Aponta o lado pra mim.
Segurando uma risada o dono da banca apontou pra qualquer lado. Skiter agradeceu e foi embora.
Muitas paradas em bancas depois, Skiter tinha entendido que não ia conseguir chegar a pé no lugar e resolveu pegar um avião. Sabia que não tinha dinheiro para pagar uma passagem, mas também sabia que ninguém ia velo entrando no compartimento de bagagem do avião.
Um dos poderes entais que tinha manifestado era o de se mover com extrema velocidade. Era tão rápido que não conseguia fazer coisas muito precisas, mas era suficiente para correr em uma velocidade que o tornava invisível aos olhos mundanos. Esse poder também era muito útil quando ele tinha que brigar com algum segurança de boate. Vários socos indefensáveis em uma fração de segundos era eficiente até contra brutamontes enormes.
Sem maiores dificuldades, Skiter invadiu o aeroporto de Guarulhos e entrou sem ser visto no compartimento de bagagens de um avião que ia para Joanesburgo. Esse fato em si já foi um feito maior do que passar pela segurança e entrar no avião. Entrar no avião correto foi um misto de sorte e de muitas perguntas para os funcionários do aeroporto. Skiter não era burro, mas também não era lá muito esperto. Agia sempre por impulso e norteado pelo que achava ser o certo a fazer no momento. Claro que sua orientação de certo ou errado também mudava conforme a situação. Caos era a corrupção que o definia.
Dentro do compartimento de bagagens do avião ele percebeu que o mesmo começava a levantar vôo. Ainda não sabia ao certo como descobriria já ter chegado ao seu objetivo, mas no momento sua maior preocupação era o frio que começava a tomar conta do lugar. Preocupado em pegar um resfriado (sim, Skiter não tinha grandes preocupações na vida), ele começou a abrir algumas bagagens e por sorte achou vários agasalhos pesados e se vestiu com blusas, luvas e um gorro vermelho que foi furado pelos seus chifres.
Ele se aconchegou em um canto escondido, se cobriu com outros agasalhos e pegou no sono.
Em seu sonho Skiter pela primeira vez não viu a paisagem africana. Era como se o fato de estar indo para o lugar real tivesse lhe dado uma folga mental. Infelizmente outro pesadelo substituiu o pesadelo rotineiro.
Em seu mundo onírico ele ainda era uma criança de cabelo preto lambido. Vestindo um terninho de colégio tradicional ele estava em uma sala de espera do escritório de seu pai. Seus pés mal tocavam o chão e ele tentava se distrair olhando para o relógio cuco que nunca saia de sua casinha quando ele estava olhando. Mas focar no antigo relógio cuja casca era esculpida em pau-brasil o fazia ignorar um pouco os berros de seus pais que brigavam no escritório. Seu pai xingava sua mãe de vagabunda e a acusava de dormir com seu contador. Quando criança Skiter se abalava mais pelos gritos e pelo som de objetos sendo quebrados, porque não entendia como podia ser ruim sua mãe dormir com o contador. Ele mesmo já tinha dormido com várias outras crianças quando freqüentava a creche e nunca tinha visto isso como algo ruim. Mas quando cresceu tinha entendido que sua mãe era infiel e não perdia uma única oportunidade de trair seu pai. De certa forma ele até a entendia, já que seu pai era extremamente frio e cruel. Ele nunca lhes dirigia palavras amáveis e baseava todo seu tempo em ganhar dinheiro vendendo vereditos. Para o Juiz Carlos Montenegro a justiça era apenas uma forma de se ganhar mais dinheiro.
O cuco não saia do relógio e o pesadelo parecia não ter fim. Os gritos foram acabando e quando Skiter viu ele já era adulto e tudo a sua volta tinha envelhecido. A madeira do relógio já estava podre. Os ponteiros haviam parado. A pintura das paredes estava descascada e tudo tinha aparência de abandono. Seu pai saiu de seu escritório com pressa sem olhar para ele. Skiter se levantou, caminhou até o escritório de seu pai e viu sua mãe caída no chão com uma antiga adaga cravejada de diamantes, que seu pai usava para abrir cartas, enfiada nas costas. Skiter sentou ao lado dela contemplativo e perguntou:
– Foi axim mesmu qui acontesseu?
– Ou talvez você tenha me encontrado enforcada na garagem – respondeu o cadáver de sua mãe se sentando. Um fio de sangue escorria pelo canto de sua boca cheia de batom vulgar. – Memórias não são confiáveis não é mesmo?
– Ainda maiss em sonhos – disse Skiter tendo consciência de estar em um raro sonho lúcido. Eu só sei que voche morreu e eu fugi de casa ou que voche morreu porque eu fugi de casa por não agüentar mais as briga de voches.
– Vai saber não é? Mas você ter virado menino de rua piorou bem sua fala não é meu querido?
– Xabe como é, nas rua eu num tinha fonodiabola.
– Mas droga tinha bastante né?
– Ixu tinha mesmu, mas num é depois de morta que oche vai se preocupar cumigu né? – disse Skiter enquanto se levantava.
– Só mais uma coisa meu querido.
– Uque?
– Os filhos alteram seus pais tanto quanto.
Skiter acordou logo após a última frase de sua mãe. No momento ela não lhe fez muito sentido, mas ela ficou gravada fortemente em seu inconsciente.

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