sexta-feira, 3 de abril de 2009


A Torre Negra: O Pistoleiro


Autor : Stephen King

A Torre Negra Volume 1: O Pistoleiro (The Gunslinger), Stephen King. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2004, 221 páginas. Tradução de Mário Molina. Capa de Igor Machado.
A crítica brasileira está devendo uma avaliação da série de Stephen King, "A Torre Negra", depois que a Objetiva concluiu sua publicação em 2007 com o lançamento do sétimo volume.
Leia também:» Stephen King em 2008» DROPS
O primeiro livro, O Pistoleiro, é um fix-up de histórias originalmente publicadas na revista americana The Magazine of Fantasy and Science Fiction na década de 1970 e 80. É o único livro da série com esse formato - e o mais breve de todos. Em 1978, quando foi publicada a primeira história, King ainda não possuía uma idéia clara da direção que a série iria tomar; ao terminá-la, ele retornou ao primeiro volume e revisou o texto a partir daquilo que havia aprendido, ao escrever os sete livros. É a segunda edição revista e levemente ampliada, esta que a Editora Objetiva trouxe para os leitores brasileiros.
A inspiração para a série veio de fontes diversas: o poema "Childe Roland to the Dark Tower Came", do poeta inglês Robert Browning (1812-1889), certamente forneceu o mote, mas na introdução King registra o seu desejo de escrever, depois de ter lido O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, uma espécie de fantasia ambientada num mundo secundário de cores menos medievais e mais associadas ao western. A inspiração teria vindo após ele assistir um filme de Sergio Leone, o mestre dos western-spaghetti. (Ele não apenas cumpriu o seu objetivo com "A Torre Negra", mas também com o seu magnus-opus, A Dança da Morte, de 1978).
O protagonista é Roland Deschain, o último membro de uma aristocracia guerreira extinta. Ele aparece caminhando no deserto, onde encontra um homem que tem um corvo de estimação, e conta a ele como veio parar ali. Sua última parada fora o vilarejo de Tull, onde ele tomara Alice, co-proprietária do saloon local, como amante. Roland está no trilha do homem de negro, uma misteriosa figura que fora responsável pela derrocada da sociedade dos pistoleiros. De passagem por Tull, o homem de negro ressuscitou um vagabundo e deixou a pastora da igreja do vilarejo impregnada - no literal e no figurado - pela mistificação de que ele é capaz de impor às pessoas.
Tull é descrita como um lugar de vício e desespero - dentro daquela estética cínica, esquálida e ríspida do western-spaghetti. No funeral interrompido pelo homem de negro, ensaiava-se uma orgia. Despeito, incesto, violência gratuita e velhas cicatrizes são apontados ou sugeridos a todo instante. Todos recebem mal o Pistoleiro e suas moedas de ouro. O ex-amante de Alice tenta matá-lo. Enfim, incitados pela obesa Sylvia Pittston, a pastora (e uma espécie de arquétipo feminino violento que King evocaria também no romance Mysery), todos também tentam matá-lo, forçando-o a abrir caminho com seus dois revólveres.
Roland aqui é como Clint Eastwood no filme O Estranho sem Nome (1972), e ele abandona Tull como nada menos que um assassino em massa. A seqüência do tiroteio é vertiginosa e implacável, terrível realmente.
No segundo capítulo (ou segunda história do fix-up) o exausto Roland encontra um posto de parada abandonado, com um menino solitário vivendo ali - Jake Chambers, um garoto que fora morto pelo homem de negro nas ruas de Manhattan da década de 1970. No primeiro capítulo já apareciam indicações de que o mundo do Pistoleiro não é apenas um mundo secundário, mas também uma espécie de espaço do pós-morte. Esse espaço funciona, ao mesmo tempo, como um universo paralelo ao nosso em que elementos da nossa vida contemporânea parecem "vazar" para o árido mundo de Roland - todo mundo, por exemplo, parece adorar a balada "Hey Jude", dos Beatles (não se escapa deles nem no outro mundo)... Ali, Jake começa rapidamente a perder a memória de sua vida anterior, enquanto o Pistoleiro lhe conta histórias de sua juventude na fortaleza do clã Gilead.
Roland se afeiçoa prontamente a Jake, e aos poucos o leitor vai compreendendo que ele possui uma consciência - só não sabe bem o que fazer com ela.
Ele é atacado por um fantasma no porão do posto, enquanto Jake é seduzido por um súcubo/oráculo em um terreno antigo ali perto, sendo salvo por Roland no último instante. Do oráculo o Pistoleiro fica sabendo que para enfrentar o homem de negro e chegar à Torre ele precisará reunir três pessoas e formar uma fellowship como em O Senhor dos Anéis. Esses encontros com o sobrenatural, embora mantenham a estranha dicção que King dá ao seu mundo secundário, lembram episódios semelhantes escritos por Robert E. Howard ou H. P. Lovecraft - fornecendo uma ligação com a weird fiction de outrora.
Sempre na pista do elusivo homem de negro, Roland e Jake formam uma pareceria, mas cedo o menino compreende que não pode confiar no seu companheiro. O próprio Pistoleiro dá a entender que o sacrificaria prontamente se fosse necessário, e para ilustrar conta uma narrativa de sua iniciação como pistoleiro, sacrificando seu falcão para vencer uma luta contra Cort, o treinador de pistoleiros dos Gilead.
Juntos, homem e menino se metem num uma espécie de metrô abandonado (exemplos de um passado tecnológico avançado aparecem com freqüência em vários momentos), onde enfrentam grotescos mutantes, até divisarem a figura do homem de negro, no fim do túnel.
O romance fecha com um diálogo bastante enigmático, quase uma parábola como aquelas nos fechos de vários romances de Cormac McCarthy, em que o homem de negro dá a Roland (e ao leitor), um tênue vislumbre do que está em jogo: e não é nada menos do que o destino de todos os universos, o nosso inclusive, de algum modo determinado pelo destino da Torre. Nisso "A Torre Negra" se configura como uma das obras mais ambiciosas do autor.
Em O Pistoleiro King cria um universo ficcional áspero e violento, uma mistura de fantasia, ficção científica e western, e nisso fica clara a sua posição de precursor da atual corrente new weird. A atmosfera é a de um sonho ou pesadelo, seu estilo é bem diferente do dos outros livros de King - enigmático, elíptico, mas entremeado de detalhes específicos que ajudam a situar o leitor nesse mundo de desespero, dor e desengano. O palco que ele prepara para o que virá nos volumes seguintes é apenas um esboço de situações e paisagens. O principal é a caracterização de Roland como um perseguidor implacável e matador instintivo, que não medirá esforços ou sacrifícios, para realizar a sua missão.
Um herói incomum, se pensarmos que ele se coloca como a única oposição à entropia total de tudo o que jamais existiu.

0 comentários: